sábado, 19 de novembro de 2011

QUAL É A NOSSA ESPERANÇA?



Pôr do sol às margens do rio Tocantins em Imperatriz - MA
(Foto de Valdizar Lima)
 

O mês de novembro nos leva a pensar naquelas realidades que se apresentam no horizonte de nossas vidas, com as quais todos vamos nos deparar: a morte (Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos), o Paraíso (Solenidade de Todos os Santos) e a instauração definitiva do Reino de Cristo (últimos domingos do Tempo Comum, Solenidade de Cristo Rei do Universo e primeira parte do Tempo do Advento). A morte, o juízo, a vida eterna, o Reino de Deus são realidades escatológicas, ou seja, que dizem respeito ao eschaton (o "fim", no sentido de plenitude, realização, destino, mas não de destruição) do homem e do mundo.
Em 30 de novembro de 2007 o Papa Bento XVI publicou sua segunda Carta Encílica, intitulada Spe Salvi, sobre a esperança cristã. É o documento mais atualizado da Igreja sobre a escatologia, que busca apresentar a "razão da nossa esperança" (cf. 1Pd 3,15) em diálogo com as críticas da Modernidade, removendo preconceitos e falsas interpretações e propondo com clareza o pensamento eclesial.
Como um convite à leitura deste documento pontifício, apresento aqui um resumo que preparei dos seus conteúdos centrais, com o desejo de contribuir para a formação dos nossos fiéis.

BENTO XVI E A ESPERANÇA CRISTÃ:
resumo da Carta Encíclica Spe Salvi

Laersio da Silva Machado
3º ano de Teologia - Diocese de Imperatriz

1 INTRODUÇÃO
“Atualmente permanecem estas três: a fé (πίστις), a esperança (ελπίς), o amor (αγάπη). Mas a maior delas é o amor” (1Cor 13,13). Bento XVI, como teólogo fundamental de matriz Agostiniana (e, portanto, paulina) e influenciado pela Theologia crucis de Hans Urs von Balthasar (“só o amor é crível”), concorda plenamente com essa perícope da carta aos coríntios. Tanto é verdade que, segundo afirmam muitos vaticanistas, ele assumiu o projeto de apresentar ao longo de seu pontificado, em três encíclicas, cada uma das virtudes teologais.
Dando-se crédito a tal informação, percebe-se a lógica paulina da composição. Bento XVI inicia tratando da maior das virtudes, o Amor: Deus caritas est (1Jo 4,16). Este é, de fato, o incipit da sua primeira carta encíclica, mas é também o pano de fundo de outros dois documentos: a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis e a Carta Encíclica Caritas in Veritate.
A primeira das virtudes, a Fé, ao que parece será tratada no ano próximo – para o qual foi convocado um “Ano da Fé”, com o objetivo de repropor a fé cristã ao mundo na comemoração do Cinquentenário da Abertura do II Concílio Ecumênico do Vaticano (1962 – 2012). Aguarda-se uma encíclica sobre a Fides para breve.
Mas a segunda das virtudes, a Esperança, foi o tema da Carta Encíclica Spe Salvi, aqui resumida. “Spe Salvi facti sumus” – “Na esperança é que fomos salvos” (Rm 8,24). Esta encíclica aborda toda a problemática contemporânea da esperança: se Theodor Adorno afirmou que não pode haver poesia depois de Auschwitz, Bento XVI tenta responder à pergunta de se é possível não apenas "falar sobre", mas "encontrar uma" esperança para a humanidade depois de Auschwitz.

2 A ESPERANÇA CRISTÃ: FÉ E SALVAÇÃO

A encíclica tem início com a afirmação categórica, fundada no texto paulino que lhe serve de incipit, de que a esperança cristã é de tal magnitude que, por si mesma, é portadora de salvação. Indagando-se sobre que tipo de esperança é esta, então, Bento XVI apresenta, a partir do dado bíblico, a quase identidade entre esperança e fé: quem não tem fé, quem não encontrou Deus, não possui esperança neste mundo (cf. Ef 2,12).
A esperança cristã funda-se no conhecimento de Deus – do verdadeiro Deus. Não se trata de uma esperança fugaz de teor político, mas de um encontro com um Ser, com uma Vida que comunica vida, um encontro com o Absoluto que transforma e dá sentido a toda a existência humana: a esperança cristã é o encontro pessoal com Deus em Jesus Cristo.
Encontrar Deus, o Verdadeiro Deus é reconhecer que a vida tem um sentido, que ela não é dirigida pela sobranceira imprevisibilidade do destino, nem pela cíclica configuração dos astros, mas que ela está nas mãos de seu Autor.
A fé é, incoativamente, a realização de tudo aquilo que somos chamados a ser em plenitude no nosso telos, em Deus: ela já é início da eternidade. E por isso a fé é esperança, e esperança redentora, pois ela nos mergulha na tensão do “já” possuir os bens eternos e do “ainda não” possuí-los em plenitude.
Bento XVI prossegue tentando responder ao questionamento do homem de hoje acerca do sentido de uma vida eterna: afinal, que realidade-promessa é esta? Para tanto, retomando os Padres da Igreja – em particular Ambrósio de Milão – recorda que todo homem traz inscrito em si um profundo desejo de eternidade. Desejo que esconde e revela um paradoxo: não nos conformamos com a brevidade da vida na terra, desejamos durar por mais tempo, por todo o tempo; mas não desejamos perpetuar os sofrimentos aos quais estamos sujeitos. Queremos e não queremos ser eternos. A finitude humana é, portanto, um remédio para a tediosa e sofrida “vida eterna” neste mundo.
A este paradoxo Agostinho dá um novo sentido: nós almejamos a vita beata, a vida feliz, bem-aventurada. Não desejamos perpetuar os sofrimentos, mas sim a felicidade. E é isso que pedimos na oração. Mas pedimos sem conhecimento, sem saber o que desejamos, tateando no escuro de nossa docta ignorantia.
Esta realidade que parece tão confusa – que é desejada e repugnada, que “já-é” e que também “ainda-não-é” – é a esperança que nos move. É, diz o Papa Ratzinger, “algo parecido com o instante repleto de satisfação, em que a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe (...), um incessante mergulhar na vastidão do ser, ao mesmo tempo que ficamos simplesmente inundados pela alegria” (SS, n. 12).
Adentrando nas críticas do pensamento moderno ocidental à esperança cristã, Bento XVI passa a confrontar a esperança cristã (em seu rosto original e profundo) com a esperança construída como alternativa a esta pela Modernidade.
Os modernos acusam a esperança cristã, fundada na crença na salvação, de ser individualista: enquanto olhamos o céu, em busca de um momento em que seremos arrebatados ao encontro do Senhor, esquecemo-nos do mundo e, muito ocupados em encontrar a nossa salvação, deixamos os demais entregues à própria sorte e às suas misérias.
Citando Henri de Lubac, buscando nas Sagradas Escrituras o fundamento último, o Papa Bávaro demonstra o caráter social, coletivo da esperança cristã: não nos salvamos sozinhos, mas em conjunto, como Civitas Dei, Populo Dei. E vai além: aponta a origem dessa tergiversação da mensagem cristã.
Francis Bacon e seus adeptos indicaram a ciência como a responsável pela dominação da natureza, a realização de todo progresso e a conquista da absoluta autonomia do homem pela razão e pela liberdade. A esperança tinha um novo nome: não mais fé, mas progresso. A religião, portanto, perdeu seu papel de portadora da esperança para a humanidade. Ela deveria agora oferecer ao homem apenas o cuidado de sua alma em vista da salvação eterna individual.
A caminhada em busca do progresso com o Iluminismo e seus continuadores (o marxismo, por exemplo), tornou-se um progressivo distanciamento da esperança cristã, sempre mais relegada para a esfera individual, privada – quando não sumariamente eliminada não como desnecessária, mas como prejudicial (p. ex. os radicais da Revolução Francesa e do materialismo).
Os resultados da história, porém, foram funestos: nenhum dos caminhos que prometeram o Reino do Homem como era de plena realização das esperanças funcionou. O Iluminismo levou, de um lado (o de Marx) ao impasse diante do dia depois da ascensão do proletariado que conduziu a Stálin e seus expurgos, e, de outro lado (o do capitalismo) ao império da vontade (Hitler e os campos de concentração) e ao absurdo da técnica (a Bomba Atômica dos Estados Unidos).
Ambos os modelos buscaram uma esperança des-humana: o homem permanece sempre homem, capaz de escolhas (pelo Bem e pelo Mal). E por causa desta ambiguidade potencial as realizações humanas também são ambíguas: podem salvar ou matar. Um progresso fundado na técnica, na ciência, na economia é um projeto falido em sua raiz.
É preciso antes um progresso ético, que se faz sempre de novo, a cada geração: este é o verdadeiro exercício da liberdade. Ser livre é escolher quais os caminhos trilhar diante da realidade, tendo como base as experiências do passado, mas não irremediavelmente determinado ad extra por elas.
Para trilhar este caminho em busca de uma esperança que seja factível e suficiente, enfim, que seja verdadeira, é preciso fazer a autocrítica da modernidade, mas também do cristianismo moderno (a devotio moderna, que embarcou na onda do momento e dirigiu-se de maneira intimista ao indivíduo isolado).
“Não é a ciência que redime o homem. O homem é redimido pelo amor” (SS, n. 26). Esta é a vida eterna: é viver o amor imperecível, o amor sem ocaso, o Amor que é uma Pessoa (Jo 17,3; 1Jo 4,16), que encontramos em Cristo Jesus.
A relação com Deus, com o Amor Eterno, faz-se através de Jesus. E, apesar de pessoal, não é individual: o encontro com Jesus insere-nos no objetivo de sua Encarnação – a salvação de todos. É neste “todos” que nós entramos em relação: o telos de Jesus Cristo era oferecer a Vida, a Esperança definitiva a “todos”; encontrando-nos com Jesus e entrando em relação com ele também nós assumimos o telos de Jesus como nosso.
A esperança cristã aprende-se em alguns “locais” específicos. Antes de tudo na oração, quando nos lançamos confiadamente naquele que jamais deixa de nos ouvir, que jamais nos abandona à nossa própria sorte, mas que está sempre à nossa espera. E a oração, que é – segundo Agostinho – o exercício do desejo, da dilatação da alma, leva a um caminho para encher-se de esperança: é preciso retirar o vinagre do recipiente de nosso coração para dar lugar à doçura do mel com que Deus quer preenchê-lo. Só há lugar para a esperança onde se retirou a desesperança e o desamor.
Mas a ação e o sofrimento também são “lugares” de aprendizado da esperança. Lá onde as forças parecem insuficientes, onde parece não haver esperança alguma, é lá que devemos esperar contra toda humana esperança. É esta “grande esperança” que permite ao homem suportar as ondas revoltas da História e as vicissitudes da vida cotidiana sem desesperar. E esperar além dos sofrimentos não significa resignar-se diante destes e não tentar minorá-los: significa ter a consciência de que é impossível removê-los de todo do horizonte da humanidade.
É nos porões, nos calabouços da vida humana, na “hora das trevas” que também encontramo-nos – mais uma vez – com Jesus Cristo: ele desceu ad inferos para aproximar-se de quem foi ali lançado, para erguê-lo novamente à sua condição de dignidade, transformando trevas em luz.
Bento XVI apresenta, num confronto com as expectativas da Modernidade e do homem de hoje, o Juízo como lugar não só de aprendizagem, mas de exercício da esperança. O Juízo não pode ser mais apresentado como o quiseram os artistas do fim da Idade Média e do Renascimento: o Dies Irae, terrível e temível. É ele o momento do encontro definitivo com a razão de toda esperança. É o termo da esperança, que de “espera” torna-se realização, ato. Inferno, paraíso e purgatório não são e nem podem ser elementos de temor, mas de esperança: esperança na Justiça (o mal não triunfará, mas será condenado) e na Graça (o amor de Deus superará as fraquezas humanas, “queimando” as imperfeições e impurezas que encobriam o tesouro da vida divina no coração).
Por fim, dirigindo o olhar para Maria, Estrela da Esperança, Bento XVI eleva uma prece para que todos os homens aprendam dela a crer, esperar e amar. Ela é a "estrela da esperança": como peregrina na fé (Lumen Gentium 58), já encontrou o porto ao qual nos destinamos. Agora, como a estrela polar, ela nos indica o nosso Norte, o destino para o qual navegamos em meio às tormentosas e revoltas ondas do mar da vida. Olhando para tal estrela podemos ter certeza de atingir também o nosso destino: a vida eterna em comunhão com Deus, que é nossa esperança.

3 CONCLUSÃO

A Carta Encíclica Spe Salvi, com clareza de doutrina e de argumentação, estabelece um diálogo com as mais críticas tendências filosóficas da modernidade, respondendo a seus questionamentos e apresentando também as suas falhas nos seus projetos de “esperança”.
Bento XVI não trilha a senda de uma batalha apologética, comprovando a veracidade incontestável da doutrina eclesial contra as heréticas proposições dos “modernistas”. Ao contrário, em seu diálogo é capaz de apontar também os elementos positivos das mais diversas posições filosóficas – mesmo o marxismo. Ele rompe com alguns preconceitos e más-compreensões da doutrina católica e, apresentando o verdadeiro rosto da esperança cristã, demonstra como ela é capaz de responder satisfatoriamente aos anelos do homem.
O Papa faz um convite que deve ser aceito por todos: não basta passar em revista a história da filosofia e, com o dedo em riste, indicar as falhas dos que pensaram de modo diferente. É preciso um exame também do cristianismo moderno, do cristianismo atual: a pergunta, pleonasticamente, seria “que esperança esperamos”? Fazendo este exercício de honestidade e de correção de desvios poderemos, como pede São Pedro, estar prontos a “dar a razão de nossa esperança a todos aqueles que nos pedirem” (1Pd 3,15).


REFERÊNCIAS


BENTO XVI. Carta encíclica Spe Salvi do Sumo Pontífice Bento XVI aos bispos, presbíteros e diáconos, às pessoas consagradas e a todos os fiéis leigos sobre a esperança cristã. 4.ed. São Paulo: Paulinas, 2008. (A voz do Papa, 192).