quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

CELEBRAÇÕES FESTIVAS NO SEMINÁRIO

Ontem, 30 de novembro, festa de Santo André, Apóstolo, foi um dia muito especial para o nosso Seminário, marcado por alguns eventos significativos em nossa caminhada. Estamos em plena visita canônica pastoral de Dom Gilberto Pastana - de 29 de novembro a 02 de dezembro. Durante a celebração desta quarta-feira os seminaristas Francisco Nilson e Francildo foram admitidos entre os candidatos às ordens sacras: é o último passo, praticamente, em vista da ordenação diaconal, quando eles se consagrarão ao serviço do Povo de Deus.
A celebração marcou também a despedida do Pe. Elisvaldo Cardoso como reitor do Seminário Bom Pastor e a posse do novo reitor, Pe. Ivanildo Oliveira. Pe. Elisvaldo permanecerá em São Luís, como administrador da Paróquia São José do Bonfim, na Vila Nova, até a conclusão do seu curso de psicologia. Pe. Ivanildo, recém-chegado do mestrado em Direito Canônico, em Roma, assumiu a reitoria do Seminário, devendo permanecer na função por seis anos. Além de reitor, Pe. Ivanildo será também professor de Direito Canônico no Instituto de Estudos Superiores do Maranhão - IESMA e auxiliará no Tribunal Eclesiástico Regional de São Luís.
A celebração litúrgica contou com a presença de familiares dos seminaristas, membros das comunidades em que realizam suas atividades pastorais, membros da comunidade local do bairro Sá Viana, amigos de Imperatriz que residem ou estudam em São Luís, amigos de caminhada dos demais seminários e da faculdade, vários reitores e alguns padres da Diocese. A celebração contou com mais ou menos 200 pessoas. Após a Santa Missa foi oferecido um jantar festivo.
Em breve postaremos em nosso blog as fotos dos momentos principais da celebração.

sábado, 19 de novembro de 2011

QUAL É A NOSSA ESPERANÇA?



Pôr do sol às margens do rio Tocantins em Imperatriz - MA
(Foto de Valdizar Lima)
 

O mês de novembro nos leva a pensar naquelas realidades que se apresentam no horizonte de nossas vidas, com as quais todos vamos nos deparar: a morte (Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos), o Paraíso (Solenidade de Todos os Santos) e a instauração definitiva do Reino de Cristo (últimos domingos do Tempo Comum, Solenidade de Cristo Rei do Universo e primeira parte do Tempo do Advento). A morte, o juízo, a vida eterna, o Reino de Deus são realidades escatológicas, ou seja, que dizem respeito ao eschaton (o "fim", no sentido de plenitude, realização, destino, mas não de destruição) do homem e do mundo.
Em 30 de novembro de 2007 o Papa Bento XVI publicou sua segunda Carta Encílica, intitulada Spe Salvi, sobre a esperança cristã. É o documento mais atualizado da Igreja sobre a escatologia, que busca apresentar a "razão da nossa esperança" (cf. 1Pd 3,15) em diálogo com as críticas da Modernidade, removendo preconceitos e falsas interpretações e propondo com clareza o pensamento eclesial.
Como um convite à leitura deste documento pontifício, apresento aqui um resumo que preparei dos seus conteúdos centrais, com o desejo de contribuir para a formação dos nossos fiéis.

BENTO XVI E A ESPERANÇA CRISTÃ:
resumo da Carta Encíclica Spe Salvi

Laersio da Silva Machado
3º ano de Teologia - Diocese de Imperatriz

1 INTRODUÇÃO
“Atualmente permanecem estas três: a fé (πίστις), a esperança (ελπίς), o amor (αγάπη). Mas a maior delas é o amor” (1Cor 13,13). Bento XVI, como teólogo fundamental de matriz Agostiniana (e, portanto, paulina) e influenciado pela Theologia crucis de Hans Urs von Balthasar (“só o amor é crível”), concorda plenamente com essa perícope da carta aos coríntios. Tanto é verdade que, segundo afirmam muitos vaticanistas, ele assumiu o projeto de apresentar ao longo de seu pontificado, em três encíclicas, cada uma das virtudes teologais.
Dando-se crédito a tal informação, percebe-se a lógica paulina da composição. Bento XVI inicia tratando da maior das virtudes, o Amor: Deus caritas est (1Jo 4,16). Este é, de fato, o incipit da sua primeira carta encíclica, mas é também o pano de fundo de outros dois documentos: a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis e a Carta Encíclica Caritas in Veritate.
A primeira das virtudes, a Fé, ao que parece será tratada no ano próximo – para o qual foi convocado um “Ano da Fé”, com o objetivo de repropor a fé cristã ao mundo na comemoração do Cinquentenário da Abertura do II Concílio Ecumênico do Vaticano (1962 – 2012). Aguarda-se uma encíclica sobre a Fides para breve.
Mas a segunda das virtudes, a Esperança, foi o tema da Carta Encíclica Spe Salvi, aqui resumida. “Spe Salvi facti sumus” – “Na esperança é que fomos salvos” (Rm 8,24). Esta encíclica aborda toda a problemática contemporânea da esperança: se Theodor Adorno afirmou que não pode haver poesia depois de Auschwitz, Bento XVI tenta responder à pergunta de se é possível não apenas "falar sobre", mas "encontrar uma" esperança para a humanidade depois de Auschwitz.

2 A ESPERANÇA CRISTÃ: FÉ E SALVAÇÃO

A encíclica tem início com a afirmação categórica, fundada no texto paulino que lhe serve de incipit, de que a esperança cristã é de tal magnitude que, por si mesma, é portadora de salvação. Indagando-se sobre que tipo de esperança é esta, então, Bento XVI apresenta, a partir do dado bíblico, a quase identidade entre esperança e fé: quem não tem fé, quem não encontrou Deus, não possui esperança neste mundo (cf. Ef 2,12).
A esperança cristã funda-se no conhecimento de Deus – do verdadeiro Deus. Não se trata de uma esperança fugaz de teor político, mas de um encontro com um Ser, com uma Vida que comunica vida, um encontro com o Absoluto que transforma e dá sentido a toda a existência humana: a esperança cristã é o encontro pessoal com Deus em Jesus Cristo.
Encontrar Deus, o Verdadeiro Deus é reconhecer que a vida tem um sentido, que ela não é dirigida pela sobranceira imprevisibilidade do destino, nem pela cíclica configuração dos astros, mas que ela está nas mãos de seu Autor.
A fé é, incoativamente, a realização de tudo aquilo que somos chamados a ser em plenitude no nosso telos, em Deus: ela já é início da eternidade. E por isso a fé é esperança, e esperança redentora, pois ela nos mergulha na tensão do “já” possuir os bens eternos e do “ainda não” possuí-los em plenitude.
Bento XVI prossegue tentando responder ao questionamento do homem de hoje acerca do sentido de uma vida eterna: afinal, que realidade-promessa é esta? Para tanto, retomando os Padres da Igreja – em particular Ambrósio de Milão – recorda que todo homem traz inscrito em si um profundo desejo de eternidade. Desejo que esconde e revela um paradoxo: não nos conformamos com a brevidade da vida na terra, desejamos durar por mais tempo, por todo o tempo; mas não desejamos perpetuar os sofrimentos aos quais estamos sujeitos. Queremos e não queremos ser eternos. A finitude humana é, portanto, um remédio para a tediosa e sofrida “vida eterna” neste mundo.
A este paradoxo Agostinho dá um novo sentido: nós almejamos a vita beata, a vida feliz, bem-aventurada. Não desejamos perpetuar os sofrimentos, mas sim a felicidade. E é isso que pedimos na oração. Mas pedimos sem conhecimento, sem saber o que desejamos, tateando no escuro de nossa docta ignorantia.
Esta realidade que parece tão confusa – que é desejada e repugnada, que “já-é” e que também “ainda-não-é” – é a esperança que nos move. É, diz o Papa Ratzinger, “algo parecido com o instante repleto de satisfação, em que a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe (...), um incessante mergulhar na vastidão do ser, ao mesmo tempo que ficamos simplesmente inundados pela alegria” (SS, n. 12).
Adentrando nas críticas do pensamento moderno ocidental à esperança cristã, Bento XVI passa a confrontar a esperança cristã (em seu rosto original e profundo) com a esperança construída como alternativa a esta pela Modernidade.
Os modernos acusam a esperança cristã, fundada na crença na salvação, de ser individualista: enquanto olhamos o céu, em busca de um momento em que seremos arrebatados ao encontro do Senhor, esquecemo-nos do mundo e, muito ocupados em encontrar a nossa salvação, deixamos os demais entregues à própria sorte e às suas misérias.
Citando Henri de Lubac, buscando nas Sagradas Escrituras o fundamento último, o Papa Bávaro demonstra o caráter social, coletivo da esperança cristã: não nos salvamos sozinhos, mas em conjunto, como Civitas Dei, Populo Dei. E vai além: aponta a origem dessa tergiversação da mensagem cristã.
Francis Bacon e seus adeptos indicaram a ciência como a responsável pela dominação da natureza, a realização de todo progresso e a conquista da absoluta autonomia do homem pela razão e pela liberdade. A esperança tinha um novo nome: não mais fé, mas progresso. A religião, portanto, perdeu seu papel de portadora da esperança para a humanidade. Ela deveria agora oferecer ao homem apenas o cuidado de sua alma em vista da salvação eterna individual.
A caminhada em busca do progresso com o Iluminismo e seus continuadores (o marxismo, por exemplo), tornou-se um progressivo distanciamento da esperança cristã, sempre mais relegada para a esfera individual, privada – quando não sumariamente eliminada não como desnecessária, mas como prejudicial (p. ex. os radicais da Revolução Francesa e do materialismo).
Os resultados da história, porém, foram funestos: nenhum dos caminhos que prometeram o Reino do Homem como era de plena realização das esperanças funcionou. O Iluminismo levou, de um lado (o de Marx) ao impasse diante do dia depois da ascensão do proletariado que conduziu a Stálin e seus expurgos, e, de outro lado (o do capitalismo) ao império da vontade (Hitler e os campos de concentração) e ao absurdo da técnica (a Bomba Atômica dos Estados Unidos).
Ambos os modelos buscaram uma esperança des-humana: o homem permanece sempre homem, capaz de escolhas (pelo Bem e pelo Mal). E por causa desta ambiguidade potencial as realizações humanas também são ambíguas: podem salvar ou matar. Um progresso fundado na técnica, na ciência, na economia é um projeto falido em sua raiz.
É preciso antes um progresso ético, que se faz sempre de novo, a cada geração: este é o verdadeiro exercício da liberdade. Ser livre é escolher quais os caminhos trilhar diante da realidade, tendo como base as experiências do passado, mas não irremediavelmente determinado ad extra por elas.
Para trilhar este caminho em busca de uma esperança que seja factível e suficiente, enfim, que seja verdadeira, é preciso fazer a autocrítica da modernidade, mas também do cristianismo moderno (a devotio moderna, que embarcou na onda do momento e dirigiu-se de maneira intimista ao indivíduo isolado).
“Não é a ciência que redime o homem. O homem é redimido pelo amor” (SS, n. 26). Esta é a vida eterna: é viver o amor imperecível, o amor sem ocaso, o Amor que é uma Pessoa (Jo 17,3; 1Jo 4,16), que encontramos em Cristo Jesus.
A relação com Deus, com o Amor Eterno, faz-se através de Jesus. E, apesar de pessoal, não é individual: o encontro com Jesus insere-nos no objetivo de sua Encarnação – a salvação de todos. É neste “todos” que nós entramos em relação: o telos de Jesus Cristo era oferecer a Vida, a Esperança definitiva a “todos”; encontrando-nos com Jesus e entrando em relação com ele também nós assumimos o telos de Jesus como nosso.
A esperança cristã aprende-se em alguns “locais” específicos. Antes de tudo na oração, quando nos lançamos confiadamente naquele que jamais deixa de nos ouvir, que jamais nos abandona à nossa própria sorte, mas que está sempre à nossa espera. E a oração, que é – segundo Agostinho – o exercício do desejo, da dilatação da alma, leva a um caminho para encher-se de esperança: é preciso retirar o vinagre do recipiente de nosso coração para dar lugar à doçura do mel com que Deus quer preenchê-lo. Só há lugar para a esperança onde se retirou a desesperança e o desamor.
Mas a ação e o sofrimento também são “lugares” de aprendizado da esperança. Lá onde as forças parecem insuficientes, onde parece não haver esperança alguma, é lá que devemos esperar contra toda humana esperança. É esta “grande esperança” que permite ao homem suportar as ondas revoltas da História e as vicissitudes da vida cotidiana sem desesperar. E esperar além dos sofrimentos não significa resignar-se diante destes e não tentar minorá-los: significa ter a consciência de que é impossível removê-los de todo do horizonte da humanidade.
É nos porões, nos calabouços da vida humana, na “hora das trevas” que também encontramo-nos – mais uma vez – com Jesus Cristo: ele desceu ad inferos para aproximar-se de quem foi ali lançado, para erguê-lo novamente à sua condição de dignidade, transformando trevas em luz.
Bento XVI apresenta, num confronto com as expectativas da Modernidade e do homem de hoje, o Juízo como lugar não só de aprendizagem, mas de exercício da esperança. O Juízo não pode ser mais apresentado como o quiseram os artistas do fim da Idade Média e do Renascimento: o Dies Irae, terrível e temível. É ele o momento do encontro definitivo com a razão de toda esperança. É o termo da esperança, que de “espera” torna-se realização, ato. Inferno, paraíso e purgatório não são e nem podem ser elementos de temor, mas de esperança: esperança na Justiça (o mal não triunfará, mas será condenado) e na Graça (o amor de Deus superará as fraquezas humanas, “queimando” as imperfeições e impurezas que encobriam o tesouro da vida divina no coração).
Por fim, dirigindo o olhar para Maria, Estrela da Esperança, Bento XVI eleva uma prece para que todos os homens aprendam dela a crer, esperar e amar. Ela é a "estrela da esperança": como peregrina na fé (Lumen Gentium 58), já encontrou o porto ao qual nos destinamos. Agora, como a estrela polar, ela nos indica o nosso Norte, o destino para o qual navegamos em meio às tormentosas e revoltas ondas do mar da vida. Olhando para tal estrela podemos ter certeza de atingir também o nosso destino: a vida eterna em comunhão com Deus, que é nossa esperança.

3 CONCLUSÃO

A Carta Encíclica Spe Salvi, com clareza de doutrina e de argumentação, estabelece um diálogo com as mais críticas tendências filosóficas da modernidade, respondendo a seus questionamentos e apresentando também as suas falhas nos seus projetos de “esperança”.
Bento XVI não trilha a senda de uma batalha apologética, comprovando a veracidade incontestável da doutrina eclesial contra as heréticas proposições dos “modernistas”. Ao contrário, em seu diálogo é capaz de apontar também os elementos positivos das mais diversas posições filosóficas – mesmo o marxismo. Ele rompe com alguns preconceitos e más-compreensões da doutrina católica e, apresentando o verdadeiro rosto da esperança cristã, demonstra como ela é capaz de responder satisfatoriamente aos anelos do homem.
O Papa faz um convite que deve ser aceito por todos: não basta passar em revista a história da filosofia e, com o dedo em riste, indicar as falhas dos que pensaram de modo diferente. É preciso um exame também do cristianismo moderno, do cristianismo atual: a pergunta, pleonasticamente, seria “que esperança esperamos”? Fazendo este exercício de honestidade e de correção de desvios poderemos, como pede São Pedro, estar prontos a “dar a razão de nossa esperança a todos aqueles que nos pedirem” (1Pd 3,15).


REFERÊNCIAS


BENTO XVI. Carta encíclica Spe Salvi do Sumo Pontífice Bento XVI aos bispos, presbíteros e diáconos, às pessoas consagradas e a todos os fiéis leigos sobre a esperança cristã. 4.ed. São Paulo: Paulinas, 2008. (A voz do Papa, 192).

terça-feira, 18 de outubro de 2011

ANO DA FÉ (11/out/2012 - 24/nov/2013)


No último domingo o Santo Padre, o Papa Bento XVI, anunciou a convocação de um Ano da Fé por ocasião do cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II (11/out/1962 - 08/dez/1965). No dia seguinda, 17 de outubro, foi publicada a Carta Apostólica sob forma de motu proprio PORTA FIDEI, convocando o evento e apresentando os seus objetivos. O anúncio foi feito durante a Missa com os participantes de um encontro internacional sobre a Nova Evangelização. É preciso ressaltar que o cinquentenário do Concílio será comemorado também com a celebração do Sínodo dos Bispos sobre a Nova Evangelização, em Roma, no mês de outubro do próximo ano.
Apresentamos, agora, o texto do documento pontifício de convocação do Ano da Fé.


CARTA APOSTÓLICA
SOB FORMA DE MOTU PROPRIO
PORTA FIDEI
DO SUMO PONTÍFICE
BENTO XVI
COM A QUAL SE PROCLAMA O ANO DA FÉ

1. A PORTA DA FÉ (cf. Act 14, 27), que introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja, está sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma. Atravessar esta porta implica embrenhar-se num caminho que dura a vida inteira. Este caminho tem início no Baptismo (cf. Rm 6, 4), pelo qual podemos dirigir-nos a Deus com o nome de Pai, e está concluído com a passagem através da morte para a vida eterna, fruto da ressurreição do Senhor Jesus, que, com o dom do Espírito Santo, quis fazer participantes da sua própria glória quantos crêem n’Ele (cf. Jo 17, 22). Professar a fé na Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – equivale a crer num só Deus que é Amor (cf. 1 Jo 4, 8): o Pai, que na plenitude dos tempos enviou seu Filho para a nossa salvação; Jesus Cristo, que redimiu o mundo no mistério da sua morte e ressurreição; o Espírito Santo, que guia a Igreja através dos séculos enquanto aguarda o regresso glorioso do Senhor.
2. Desde o princípio do meu ministério como Sucessor de Pedro, lembrei a necessidade de redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a alegria e o renovado entusiasmo do encontro com Cristo. Durante a homilia da Santa Missa no início do pontificado, disse: «A Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo devem pôr-se a caminho para conduzir os homens fora do deserto, para lugares da vida, da amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude»[1]. Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora um tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado.[2] Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes sectores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas.
3. Não podemos aceitar que o sal se torne insípido e a luz fique escondida (cf. Mt 5, 13-16). Também o homem contemporâneo pode sentir de novo a necessidade de ir como a samaritana ao poço, para ouvir Jesus que convida a crer n’Ele e a beber na sua fonte, donde jorra água viva (cf. Jo 4, 14). Devemos readquirir o gosto de nos alimentarmos da Palavra de Deus, transmitida fielmente pela Igreja, e do Pão da vida, oferecidos como sustento de quantos são seus discípulos (cf. Jo 6, 51). De facto, em nossos dias ressoa ainda, com a mesma força, este ensinamento de Jesus: «Trabalhai, não pelo alimento que desaparece, mas pelo alimento que perdura e dá a vida eterna» (Jo 6, 27). E a questão, então posta por aqueles que O escutavam, é a mesma que colocamos nós também hoje: «Que havemos nós de fazer para realizar as obras de Deus?» (Jo 6, 28). Conhecemos a resposta de Jesus: «A obra de Deus é esta: crer n’Aquele que Ele enviou» (Jo 6, 29). Por isso, crer em Jesus Cristo é o caminho para se poder chegar definitivamente à salvação.
4. À luz de tudo isto, decidi proclamar um Ano da Fé. Este terá início a 11 de Outubro de 2012, no cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II, e terminará na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, a 24 de Novembro de 2013. Na referida data de 11 de Outubro de 2012, completar-se-ão também vinte anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica, texto promulgado pelo meu Predecessor, o Beato Papa João Paulo II,[3] com o objectivo de ilustrar a todos os fiéis a força e a beleza da fé. Esta obra, verdadeiro fruto do Concílio Vaticano II, foi desejada pelo Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985 como instrumento ao serviço da catequese[4] e foi realizado com a colaboração de todo o episcopado da Igreja Católica. E uma Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos foi convocada por mim, precisamente para o mês de Outubro de 2012, tendo por tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã. Será uma ocasião propícia para introduzir o complexo eclesial inteiro num tempo de particular reflexão e redescoberta da fé. Não é a primeira vez que a Igreja é chamada a celebrar um Ano da Fé. O meu venerado Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, proclamou um ano semelhante, em 1967, para comemorar o martírio dos apóstolos Pedro e Paulo no décimo nono centenário do seu supremo testemunho. Idealizou-o como um momento solene, para que houvesse, em toda a Igreja, «uma autêntica e sincera profissão da mesma fé»; quis ainda que esta fosse confirmada de maneira «individual e colectiva, livre e consciente, interior e exterior, humilde e franca».[5] Pensava que a Igreja poderia assim retomar «exacta consciência da sua fé para a reavivar, purificar, confirmar, confessar».[6] As grandes convulsões, que se verificaram naquele Ano, tornaram ainda mais evidente a necessidade duma tal celebração. Esta terminou com a Profissão de Fé do Povo de Deus,[7] para atestar como os conteúdos essenciais, que há séculos constituem o património de todos os crentes, necessitam de ser confirmados, compreendidos e aprofundados de maneira sempre nova para se dar testemunho coerente deles em condições históricas diversas das do passado.
5. Sob alguns aspectos, o meu venerado Predecessor viu este Ano como uma «consequência e exigência pós-conciliar»[8], bem ciente das graves dificuldades daquele tempo sobretudo no que se referia à profissão da verdadeira fé e da sua recta interpretação. Pareceu-me que fazer coincidir o início do Ano da Fé com o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II poderia ser uma ocasião propícia para compreender que os textos deixados em herança pelos Padres Conciliares, segundo as palavras do Beato João Paulo II, «não perdem o seu valor nem a sua beleza. É necessário fazê-los ler de forma tal que possam ser conhecidos e assimilados como textos qualificados e normativos do Magistério, no âmbito da Tradição da Igreja. Sinto hoje ainda mais intensamente o dever de indicar o Concílio como a grande graça de que beneficiou a Igreja no século XX: nele se encontra uma bússola segura para nos orientar no caminho do século que começa».[9] Quero aqui repetir com veemência as palavras que disse a propósito do Concílio poucos meses depois da minha eleição para Sucessor de Pedro: «Se o lermos e recebermos guiados por uma justa hermenêutica, o Concílio pode ser e tornar-se cada vez mais uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja».[10]
6. A renovação da Igreja realiza-se também através do testemunho prestado pela vida dos crentes: de facto, os cristãos são chamados a fazer brilhar, com a sua própria vida no mundo, a Palavra de verdade que o Senhor Jesus nos deixou. O próprio Concílio, na Constituição dogmática Lumen gentium, afirma: «Enquanto Cristo “santo, inocente, imaculado” (Heb 7, 26), não conheceu o pecado (cf. 2 Cor 5, 21), mas veio apenas expiar os pecados do povo (cf. Heb 2, 17), a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação. A Igreja “prossegue a sua peregrinação no meio das perseguições do mundo e das consolações de Deus”, anunciando a cruz e a morte do Senhor até que Ele venha (cf. 1 Cor 11, 26). Mas é robustecida pela força do Senhor ressuscitado, de modo a vencer, pela paciência e pela caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como externas, e a revelar, velada mas fielmente, o seu mistério, até que por fim se manifeste em plena luz».[11]
Nesta perspectiva, o Ano da Fé é convite para uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo. No mistério da sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos pecados (cf. Act 5, 31). Para o apóstolo Paulo, este amor introduz o homem numa vida nova: «Pelo Baptismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova» (Rm 6, 4). Em virtude da fé, esta vida nova plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afectos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A «fé, que actua pelo amor» (Gl 5, 6), torna-se um novo critério de entendimento e de acção, que muda toda a vida do homem (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17).
7. «Caritas Christi urget nos – o amor de Cristo nos impele» (2 Cor 5, 14): é o amor de Cristo que enche os nossos corações e nos impele a evangelizar. Hoje, como outrora, Ele envia-nos pelas estradas do mundo para proclamar o seu Evangelho a todos os povos da terra (cf. Mt 28, 19). Com o seu amor, Jesus Cristo atrai a Si os homens de cada geração: em todo o tempo, Ele convoca a Igreja confiando-lhe o anúncio do Evangelho, com um mandato que é sempre novo. Por isso, também hoje é necessário um empenho eclesial mais convicto a favor duma nova evangelização, para descobrir de novo a alegria de crer e reencontrar o entusiasmo de comunicar a fé. Na descoberta diária do seu amor, ganha força e vigor o compromisso missionário dos crentes, que jamais pode faltar. Com efeito, a fé cresce quando é vivida como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria. A fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite oferecer um testemunho que é capaz de gerar: de facto, abre o coração e a mente dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a aderir à sua Palavra a fim de se tornarem seus discípulos. Os crentes – atesta Santo Agostinho – «fortificam-se acreditando».[12] O Santo Bispo de Hipona tinha boas razões para falar assim. Como sabemos, a sua vida foi uma busca contínua da beleza da fé enquanto o seu coração não encontrou descanso em Deus.[13] Os seus numerosos escritos, onde se explica a importância de crer e a verdade da fé, permaneceram até aos nossos dias como um património de riqueza incomparável e consentem ainda que tantas pessoas à procura de Deus encontrem o justo percurso para chegar à «porta da fé».
Por conseguinte, só acreditando é que a fé cresce e se revigora; não há outra possibilidade de adquirir certeza sobre a própria vida, senão abandonar-se progressivamente nas mãos de um amor que se experimenta cada vez maior porque tem a sua origem em Deus.
8. Nesta feliz ocorrência, pretendo convidar os Irmãos Bispos de todo o mundo para que se unam ao Sucessor de Pedro, no tempo de graça espiritual que o Senhor nos oferece, a fim de comemorar o dom precioso da fé. Queremos celebrar este Ano de forma digna e fecunda. Deverá intensificar-se a reflexão sobre a fé, para ajudar todos os crentes em Cristo a tornarem mais consciente e revigorarem a sua adesão ao Evangelho, sobretudo num momento de profunda mudança como este que a humanidade está a viver. Teremos oportunidade de confessar a fé no Senhor Ressuscitado nas nossas catedrais e nas igrejas do mundo inteiro, nas nossas casas e no meio das nossas famílias, para que cada um sinta fortemente a exigência de conhecer melhor e de transmitir às gerações futuras a fé de sempre. Neste Ano, tanto as comunidades religiosas como as comunidades paroquiais e todas as realidades eclesiais, antigas e novas, encontrarão forma de fazer publicamente profissão do Credo.
9. Desejamos que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é «a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força».[14] Simultaneamente esperamos que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada[15] e reflectir sobre o próprio acto com que se crê, é um compromisso que cada crente deve assumir, sobretudo neste Ano.
Não foi sem razão que, nos primeiros séculos, os cristãos eram obrigados a aprender de memória o Credo. É que este servia-lhes de oração diária, para não esquecerem o compromisso assumido com o Baptismo. Recorda-o, com palavras densas de significado, Santo Agostinho quando afirma numa homilia sobre a redditio symboli (a entrega do Credo): «O símbolo do santo mistério, que recebestes todos juntos e que hoje proferistes um a um, reúne as palavras sobre as quais está edificada com solidez a fé da Igreja, nossa Mãe, apoiada no alicerce seguro que é Cristo Senhor. E vós recebeste-lo e proferiste-lo, mas deveis tê-lo sempre presente na mente e no coração, deveis repeti-lo nos vossos leitos, pensar nele nas praças e não o esquecer durante as refeições; e, mesmo quando o corpo dorme, o vosso coração continue de vigília por ele».[16]
10. Queria agora delinear um percurso que ajude a compreender de maneira mais profunda os conteúdos da fé e, juntamente com eles, também o acto pelo qual decidimos, com plena liberdade, entregar-nos totalmente a Deus. De facto, existe uma unidade profunda entre o acto com que se crê e os conteúdos a que damos o nosso assentimento. O apóstolo Paulo permite entrar dentro desta realidade quando escreve: «Acredita-se com o coração e, com a boca, faz-se a profissão de fé» (Rm 10, 10). O coração indica que o primeiro acto, pelo qual se chega à fé, é dom de Deus e acção da graça que age e transforma a pessoa até ao mais íntimo dela mesma.
A este respeito é muito eloquente o exemplo de Lídia. Narra São Lucas que o apóstolo Paulo, encontrando-se em Filipos, num sábado foi anunciar o Evangelho a algumas mulheres; entre elas, estava Lídia. «O Senhor abriu-lhe o coração para aderir ao que Paulo dizia» (Act 16, 14). O sentido contido na expressão é importante. São Lucas ensina que o conhecimento dos conteúdos que se deve acreditar não é suficiente, se depois o coração – autêntico sacrário da pessoa – não for aberto pela graça, que consente ter olhos para ver em profundidade e compreender que o que foi anunciado é a Palavra de Deus.
Por sua vez, o professar com a boca indica que a fé implica um testemunho e um compromisso públicos. O cristão não pode jamais pensar que o crer seja um facto privado. A fé é decidir estar com o Senhor, para viver com Ele. E este «estar com Ele» introduz na compreensão das razões pelas quais se acredita. A fé, precisamente porque é um acto da liberdade, exige também assumir a responsabilidade social daquilo que se acredita. No dia de Pentecostes, a Igreja manifesta, com toda a clareza, esta dimensão pública do crer e do anunciar sem temor a própria fé a toda a gente. É o dom do Espírito Santo que prepara para a missão e fortalece o nosso testemunho, tornando-o franco e corajoso.
A própria profissão da fé é um acto simultaneamente pessoal e comunitário. De facto, o primeiro sujeito da fé é a Igreja. É na fé da comunidade cristã que cada um recebe o Baptismo, sinal eficaz da entrada no povo dos crentes para obter a salvação. Como atesta o Catecismo da Igreja Católica, «“Eu creio”: é a fé da Igreja, professada pessoalmente por cada crente, principalmente por ocasião do Baptismo. “Nós cremos”: é a fé da Igreja, confessada pelos bispos reunidos em Concílio ou, de modo mais geral, pela assembleia litúrgica dos crentes. “Eu creio”: é também a Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos ensina a dizer: “Eu creio”, “Nós cremos”».[17]
Como se pode notar, o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar o próprio assentimento, isto é, para aderir plenamente com a inteligência e a vontade a quanto é proposto pela Igreja. O conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico revelado por Deus. Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se acredita, se aceita livremente todo o mistério da fé, porque o garante da sua verdade é o próprio Deus, que Se revela e permite conhecer o seu mistério de amor.[18]
Por outro lado, não podemos esquecer que, no nosso contexto cultural, há muitas pessoas que, embora não reconhecendo em si mesmas o dom da fé, todavia vivem uma busca sincera do sentido último e da verdade definitiva acerca da sua existência e do mundo. Esta busca é um verdadeiro «preâmbulo» da fé, porque move as pessoas pela estrada que conduz ao mistério de Deus. De facto, a própria razão do homem traz inscrita em si mesma a exigência «daquilo que vale e permanece sempre».[19] Esta exigência constitui um convite permanente, inscrito indelevelmente no coração humano, para caminhar ao encontro d’Aquele que não teríamos procurado se Ele mesmo não tivesse já vindo ao nosso encontro.[20] É precisamente a este encontro que nos convida e abre plenamente a fé.
11. Para chegar a um conhecimento sistemático da fé, todos podem encontrar um subsídio precioso e indispensável no Catecismo da Igreja Católica. Este constitui um dos frutos mais importantes do Concílio Vaticano II. Na Constituição apostólica Fidei depositum – não sem razão assinada na passagem do trigésimo aniversário da abertura do Concílio Vaticano II – o Beato João Paulo II escrevia: «Este catecismo dará um contributo muito importante à obra de renovação de toda a vida eclesial (...). Declaro-o norma segura para o ensino da fé e, por isso, instrumento válido e legítimo ao serviço da comunhão eclesial».[21]  
É precisamente nesta linha que o Ano da Fé deverá exprimir um esforço generalizado em prol da redescoberta e do estudo dos conteúdos fundamentais da fé, que têm no Catecismo da Igreja Católica a sua síntese sistemática e orgânica. Nele, de facto, sobressai a riqueza de doutrina que a Igreja acolheu, guardou e ofereceu durante os seus dois mil anos de história. Desde a Sagrada Escritura aos Padres da Igreja, desde os Mestres de teologia aos Santos que atravessaram os séculos, o Catecismo oferece uma memória permanente dos inúmeros modos em que a Igreja meditou sobre a fé e progrediu na doutrina para dar certeza aos crentes na sua vida de fé.
Na sua própria estrutura, o Catecismo da Igreja Católica apresenta o desenvolvimento da fé até chegar aos grandes temas da vida diária. Repassando as páginas, descobre-se que o que ali se apresenta não é uma teoria, mas o encontro com uma Pessoa que vive na Igreja. Na verdade, a seguir à profissão de fé, vem a explicação da vida sacramental, na qual Cristo está presente e operante, continuando a construir a sua Igreja. Sem a liturgia e os sacramentos, a profissão de fé não seria eficaz, porque faltaria a graça que sustenta o testemunho dos cristãos. Na mesma linha, a doutrina do Catecismo sobre a vida moral adquire todo o seu significado, se for colocada em relação com a fé, a liturgia e a oração.
12. Assim, no Ano em questão, o Catecismo da Igreja Católica poderá ser um verdadeiro instrumento de apoio da fé, sobretudo para quantos têm a peito a formação dos cristãos, tão determinante no nosso contexto cultural. Com tal finalidade, convidei a Congregação para a Doutrina da Fé a redigir, de comum acordo com os competentes Organismos da Santa Sé, uma Nota, através da qual se ofereçam à Igreja e aos crentes algumas indicações para viver, nos moldes mais eficazes e apropriados, este Ano da Fé ao serviço do crer e do evangelizar.
De facto, em nossos dias mais do que no passado, a fé vê-se sujeita a uma série de interrogativos, que provêm duma diversa mentalidade que, hoje de uma forma particular, reduz o âmbito das certezas racionais ao das conquistas científicas e tecnológicas. Mas, a Igreja nunca teve medo de mostrar que não é possível haver qualquer conflito entre fé e ciência autêntica, porque ambas, embora por caminhos diferentes, tendem para a verdade.[22]
13. Será decisivo repassar, durante este Ano, a história da nossa fé, que faz ver o mistério insondável da santidade entrelaçada com o pecado. Enquanto a primeira põe em evidência a grande contribuição que homens e mulheres prestaram para o crescimento e o progresso da comunidade com o testemunho da sua vida, o segundo deve provocar em todos uma sincera e contínua obra de conversão para experimentar a misericórdia do Pai, que vem ao encontro de todos.
Ao longo deste tempo, manteremos o olhar fixo sobre Jesus Cristo, «autor e consumador da fé» (Heb 12, 2): n’Ele encontra plena realização toda a ânsia e anélito do coração humano. A alegria do amor, a resposta ao drama da tribulação e do sofrimento, a força do perdão face à ofensa recebida e a vitória da vida sobre o vazio da morte, tudo isto encontra plena realização no mistério da sua Encarnação, do seu fazer-Se homem, do partilhar connosco a fragilidade humana para a transformar com a força da sua ressurreição. N’Ele, morto e ressuscitado para a nossa salvação, encontram plena luz os exemplos de fé que marcaram estes dois mil anos da nossa história de salvação.
Pela fé, Maria acolheu a palavra do Anjo e acreditou no anúncio de que seria Mãe de Deus na obediência da sua dedicação (cf. Lc 1, 38). Ao visitar Isabel, elevou o seu cântico de louvor ao Altíssimo pelas maravilhas que realizava em quantos a Ele se confiavam (cf. Lc 1, 46-55). Com alegria e trepidação, deu à luz o seu Filho unigénito, mantendo intacta a sua virgindade (cf. Lc 2, 6-7). Confiando em José, seu Esposo, levou Jesus para o Egipto a fim de O salvar da perseguição de Herodes (cf. Mt 2, 13-15). Com a mesma fé, seguiu o Senhor na sua pregação e permaneceu a seu lado mesmo no Gólgota (cf. Jo 19, 25-27). Com fé, Maria saboreou os frutos da ressurreição de Jesus e, conservando no coração a memória de tudo (cf. Lc 2, 19.51), transmitiu-a aos Doze reunidos com Ela no Cenáculo para receberem o Espírito Santo (cf. Act 1, 14; 2, 1-4).
Pela fé, os Apóstolos deixaram tudo para seguir o Mestre (cf. Mc 10, 28). Acreditaram nas palavras com que Ele anunciava o Reino de Deus presente e realizado na sua Pessoa (cf. Lc 11, 20). Viveram em comunhão de vida com Jesus, que os instruía com a sua doutrina, deixando-lhes uma nova regra de vida pela qual haveriam de ser reconhecidos como seus discípulos depois da morte d’Ele (cf. Jo 13, 34-35). Pela fé, foram pelo mundo inteiro, obedecendo ao mandato de levar o Evangelho a toda a criatura (cf. Mc 16, 15) e, sem temor algum, anunciaram a todos a alegria da ressurreição, de que foram fiéis testemunhas.
Pela fé, os discípulos formaram a primeira comunidade reunida à volta do ensino dos Apóstolos, na oração, na celebração da Eucaristia, pondo em comum aquilo que possuíam para acudir às necessidades dos irmãos (cf. Act 2, 42-47).
Pela fé, os mártires deram a sua vida para testemunhar a verdade do Evangelho que os transformara, tornando-os capazes de chegar até ao dom maior do amor com o perdão dos seus próprios perseguidores.
Pela fé, homens e mulheres consagraram a sua vida a Cristo, deixando tudo para viver em simplicidade evangélica a obediência, a pobreza e a castidade, sinais concretos de quem aguarda o Senhor, que não tarda a vir. Pela fé, muitos cristãos se fizeram promotores de uma acção em prol da justiça, para tornar palpável a palavra do Senhor, que veio anunciar a libertação da opressão e um ano de graça para todos (cf. Lc 4, 18-19).
Pela fé, no decurso dos séculos, homens e mulheres de todas as idades, cujo nome está escrito no Livro da vida (cf. Ap 7, 9; 13, 8), confessaram a beleza de seguir o Senhor Jesus nos lugares onde eram chamados a dar testemunho do seu ser cristão: na família, na profissão, na vida pública, no exercício dos carismas e ministérios a que foram chamados.
Pela fé, vivemos também nós, reconhecendo o Senhor Jesus vivo e presente na nossa vida e na história.
14. O Ano da Fé será uma ocasião propícia também para intensificar o testemunho da caridade. Recorda São Paulo: «Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a caridade» (1 Cor 13, 13). Com palavras ainda mais incisivas – que não cessam de empenhar os cristãos –, afirmava o apóstolo Tiago: «De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: “Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome”, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta. Mais ainda! Poderá alguém alegar sensatamente: “Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé”» (Tg 2, 14-18). 
A fé sem a caridade não dá fruto, e a caridade sem a fé seria um sentimento constantemente à mercê da dúvida. Fé e caridade reclamam-se mutuamente, de tal modo que uma consente à outra realizar o seu caminho. De facto, não poucos cristãos dedicam amorosamente a sua vida a quem vive sozinho, marginalizado ou excluído, considerando-o como o primeiro a quem atender e o mais importante a socorrer, porque é precisamente nele que se espelha o próprio rosto de Cristo. Em virtude da fé, podemos reconhecer naqueles que pedem o nosso amor o rosto do Senhor ressuscitado. «Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40): estas palavras de Jesus são uma advertência que não se deve esquecer e um convite perene a devolvermos aquele amor com que Ele cuida de nós. É a fé que permite reconhecer Cristo, e é o seu próprio amor que impele a socorrê-Lo sempre que Se faz próximo nosso no caminho da vida. Sustentados pela fé, olhamos com esperança o nosso serviço no mundo, aguardando «novos céus e uma nova terra, onde habite a justiça» (2 Ped 3, 13; cf. Ap 21, 1).
15. Já no termo da sua vida, o apóstolo Paulo pede ao discípulo Timóteo que «procure a fé» (cf. 2 Tm 2, 22) com a mesma constância de quando era novo (cf. 2 Tm 3, 15). Sintamos este convite dirigido a cada um de nós, para que ninguém se torne indolente na fé. Esta é companheira de vida, que permite perceber, com um olhar sempre novo, as maravilhas que Deus realiza por nós. Solícita a identificar os sinais dos tempos no hoje da história, a fé obriga cada um de nós a tornar-se sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo. Aquilo de que o mundo tem hoje particular necessidade é o testemunho credível de quantos, iluminados na mente e no coração pela Palavra do Senhor, são capazes de abrir o coração e a mente de muitos outros ao desejo de Deus e da vida verdadeira, aquela que não tem fim.
Que «a Palavra do Senhor avance e seja glorificada» (2 Ts 3, 1)! Possa este Ano da Fé tornar cada vez mais firme a relação com Cristo Senhor, dado que só n’Ele temos a certeza para olhar o futuro e a garantia dum amor autêntico e duradouro. As seguintes palavras do apóstolo Pedro lançam um último jorro de luz sobre a fé: «É por isso que exultais de alegria, se bem que, por algum tempo, tenhais de andar aflitos por diversas provações; deste modo, a qualidade genuína da vossa fé – muito mais preciosa do que o ouro perecível, por certo também provado pelo fogo – será achada digna de louvor, de glória e de honra, na altura da manifestação de Jesus Cristo. Sem O terdes visto, vós O amais; sem O ver ainda, credes n’Ele e vos alegrais com uma alegria indescritível e irradiante, alcançando assim a meta da vossa fé: a salvação das almas» (1 Ped 1, 6-9). A vida dos cristãos conhece a experiência da alegria e a do sofrimento. Quantos Santos viveram na solidão! Quantos crentes, mesmo em nossos dias, provados pelo silêncio de Deus, cuja voz consoladora queriam ouvir! As provas da vida, ao mesmo tempo que permitem compreender o mistério da Cruz e participar nos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1, 24) , são prelúdio da alegria e da esperança a que a fé conduz: «Quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Cor 12, 10). Com firme certeza, acreditamos que o Senhor Jesus derrotou o mal e a morte. Com esta confiança segura, confiamo-nos a Ele: Ele, presente no meio de nós, vence o poder do maligno (cf. Lc 11, 20); e a Igreja, comunidade visível da sua misericórdia, permanece n’Ele como sinal da reconciliação definitiva com o Pai.
À Mãe de Deus, proclamada «feliz porque acreditou» (cf. Lc 1, 45), confiamos este tempo de graça.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 11 de Outubro do ano 2011, sétimo de Pontificado.

BENEDICTUS PP. XVI


[1] Homilia no início do ministério petrino do Bispo de Roma (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 710.
[2] Cf. Bento XVI, Homilia da Santa Missa no Terreiro do Paço (Lisboa – 11 de Maio de 2010): L’Osservatore Romano (ed. port. de 15/V/2010), 3.
[3] Cf. João Paulo II, Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 113-118.
[4] Cf. Relação final do Sínodo Extraordinário dos Bispos (7 de Dezembro de 1985), II, B, a, 4: L’Osservatore Romano (ed. port. de 22/XII/1985), 650.
[5] Paulo VI, Exort. ap. Petrum et Paulum Apostolos, no XIX centenário do martírio dos Apóstolos São Pedro e São Paulo (22 de Fevereiro de 1967): AAS 59 (1967), 196.
[6] Ibid.: o.c., 198.
[8] Paulo VI, Audiência Geral (14 de Junho de 1967): Insegnamenti, V (1967), 801.
[9] João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), 57: AAS 93 (2001), 308.
[10] Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 52.
[11] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 8.
[12] De utilitate credendi, 1, 2.
[13] Cf. Confissões, 1, 1.
[14] Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 10.
[15] Cf. João Paulo II, Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 116.
[16] Santo Agostinho, Sermo 215, 1.
[18] Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, cap. III: DS 3008-3009; Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 5.
[19] Bento XVI, Discurso no «Collège des Bernardins» (Paris, 12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008), 722.
[20] Cf. Santo Agostinho, Confissões, 13, 1.
[21] Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 115 e 117.
[22] Cf. João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 34.106: AAS 91 (1999), 31-32.86-87.

(C) Copyright 2011 - Libreria Editrice Vaticana



Postagem: Laersio
Fonte do documento: www.vatican.va



terça-feira, 20 de setembro de 2011

Festejo de São José de Ribamar, Padroeiro do Maranhão


No último fim-de-semana a cidade de São José de Ribamar estava em festa: era o encerramento dos festejos em honra ao Glorioso São José, padroeiro do estado do Maranhão. Lá também estavam presentes os seminaristas de Imperatriz!
Francisco Nilson e Francildo, do 4º ano de teologia, e Laersio, do 3º ano de teologia, fazem pastoral na paróquia recém-criada do Sagrado Coração de Jesus, na mesma cidade, e tomaram parte nas diversas celebrações litúrgicas, que reuniram multidões ao longo de todo o dia.
Era perceptível a grande devoção dos romeiros, manifestada em seus ex-votos, nos sacrifícios e privações, na determinação e perseverança de todos eles. Quantas pessoas pobres, vindas das mais distintas regiões do Estado, que precisaram contar com o apoio da Paróquia Santuário para fazer suas refeições! Mas todas cheias de fé e de gratidão para com Deus e São José!
O festejo deste ano teve como tema "Família de Nazaré, ponto de partida para a missão de Jesus" e foi marcado pela elevação, no dia 09, da igreja de Ribamar à categoria de Santuário Arquidiocesano (pois o título de "santuário" não havia sido concedido oficialmente ainda) e pela grande romaria na noite do dia 10 de setembro, partindo da Cohab até a praça do Santuário. A Missa de Encerramento, às 16h00 do domingo, 19 de setembro, foi presidida pelo Arcebispo Metropolitano, Dom Frei José Belisário, OFM. Após a missa os fiéis acompanharam a procissão pelas ruas de Ribamar, retornando à concha acústica da praça do Santuário para o show conclusivo com Pe. Joaozinho, scj.

Postado por: Laersio

SEMINARISTAS PARTICIPAM DA XI ROMARIA DA TERRA E DAS ÁGUAS


Nos dias 10 e 11 deste mês de setembro Açailândia recebeu mais de dez mil romeiros e romeiras de todo o estado, participantes da XI Romaria da Terra e das Águas do Maranhão. Entre tantos milhares estavam também os seminaristas das dioceses de Imperatriz e Carolina: todos foram até o Piquiá participar da Romaria.
A avaliação que fizeram da participação no evento foi muito positiva. Todos comentaram o envolvimento das comunidades, a participação massiva do povo, as apresentações interessantes e criativas ao longo da madrugada, a organização bem articulada. Marcou bastante a caminhada até o Piquiá de Baixo: aquilo que foi refletido nos encontros preparatórios e no Seminário da Romaria pode ser visto com os próprios olhos. Passando pelas ruas do Piquiá de Baixo todos tiveram a impressão de que lá realmente as imagens falam mais do que as palavras.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

PREPARAÇÃO PARA ROMARIA DA TERRA E DAS ÁGUAS


Continuamos nossa preparação rumo à Romaria da Terra e das Águas em Açailândia. Hoje à noite fizemos o segundo encontro de reflexão. Até à próxima semana concluiremos os encontros preparórios, debatendo os grandes eixos da discussão levantada pela Romaria, em comunhão com todas as comunidades que pelo Maranhão inteiro realizam os mesmos encontros. Nos vemos em Açailândia!

Quem conta um conto, aumenta um ponto... A Festa do Perdão em Madri e o aborto


 (Foto: Samuel Sanchez, El Pais)

Laersio da Silva Machado
Seminarista, licenciado em História e estudante de Teologia


Escrevo o presente texto motivado pelo debate em torno da concessão feita pelo Arcebispo de Madri, Cardeal Rouco Varela, para que os sacerdotes que ouvissem confissões na Jornada Mundial da Juventude pudessem perdoar o pecado de aborto. A notícia foi estampada em numerosos sites no mundo inteiro, em diversas línguas, nem sempre com fidelidade aos fatos. No último dia 21 de agosto, a teóloga Ivone Gebara tornou público um texto intitulado “Dois pesos e duas medidas: o aborto perdoado em Madri”, criticando a postura “dúbia” da Igreja. O artigo está disponível, dentre outros sítios, na página das Católicas pelo Direito de Decidir e na Adital.
O assunto foi debatido em uma das turmas do curso de Teologia do Instituto de Estudos Superiores do Maranhão – IESMA. Tomei conhecimento do fato e, lendo o texto da teóloga, propus-me algumas reflexões, abaixo apresentadas. Pretendo abordar a questão em dois momentos: primeiro, a partir do artigo de Gebara, verificar as informações, inquietações e questionamentos por ela apresentados; em seguida, a partir de alguns textos do magistério, apresentar os caminhos normais para o perdão do pecado de aborto.

Quando as informações se desencontram...

Ivone Gebara apresenta não apenas uma insatisfação, mas deseja “expressar publicamente” o “sentimento de repúdio à utilização da vida de tantas mulheres como pretexto de magnanimidade do coração papal” pelo perdão do pecado de aborto na Jornada Mundial da Juventude em Madri. À primeira leitura o texto arrojado, que levanta críticas fortes diante de tal concessão, parece quase nos arrastar à concordância com sua autora.
De fato, diante de tais elementos, não se pode ter outra atitude senão reprovar a utilização do perdão sacramental como instrumento para a construção de uma boa imagem do Romano Pontífice. Mas, dissemo-lo, isto ocorre numa primeira leitura. Certamente o leitor atento, curioso, não se contenta com uma lauda de informações sobre um assunto, que representa a visão de uma pessoa só.
Na semana que antecedeu a Jornada Mundial da Juventude eu havia recebido por e-mail a notícia da concessão da faculdade de perdoar o pecado de aborto a todos os confessores na Festa do Perdão, e não havia notado nada de estranho nisso. Fiz, agora, o que deveria ter feito há duas semanas: visitei o sítio da Arquidiocese de Madri e consultei a notificação do Vicariato Geral da mesma. E confirmei o que suspeitava: as informações de Ivone Gebara estão, no mínimo, desencontradas. Se não vejamos.
A teóloga afirma: “a Arquidiocese de Madri com aprovação papal autorizou a concessão do perdão e indulgência plenária às mulheres que confessarem o aborto por ocasião da visita do papa”. Gebara, felizmente, diz que tal notícia foi publicada em “diversos jornais”: de fato, muitos jornais deturparam a notícia difundida nos sítios da Arquidiocese de Madri e da Jornada Mundial da Juventude. Na internet visitei a página de alguns jornais espanhóis e, realmente, há uma confusão ao noticiar o fato. A questão poderia ter sido minimizada buscando a informação direto na fonte ou, pelo menos, em um dos milhares de blogs e sítios católicos que traziam os dados de maneira adequada, ou mesmo em outros tantos que acrescentavam explicações sobre a praxe eclesial do perdão do pecado de aborto.
A autorização foi dada pelo Cardeal Rouco Varela, enquanto Ordinário do lugar, não necessitando de nenhum placet pontifício: o arcebispo estava no pleno uso de suas atribuições. Como veremos na segunda parte deste artigo, o Cardeal Varela fez o que qualquer bispo pode fazer. Além do mais a faculdade foi concedida aos confessores não por causa da visita do Papa e sim por causa da Jornada Mundial da Juventude, que aconteceria mesmo que o Pontífice não estivesse lá.
Quanto à indulgência plenária. O Cardeal Rouco Varela solicitou à Penitenciaria Apostólica (diferente de “penitenciária”; o termo designa o dicastério da Cúria Romana responsável pela disciplina penitencial e das indulgências na Igreja Católica) a concessão da indulgência plenária a todos os participantes da Jornada Mundial da Juventude que cumprissem as exigências normais e as constantes do decreto de concessão. Este é um discurso bastante longo, que requeria uma análise mais profunda, devido à falsa ideia que se tem das indulgências. Ajudaria bastante ler a Constituição Apostólica Indulgentiarum Doctrina, do papa Paulo VI, de 1º de janeiro de 1967.
Só para recordar, as condições normais para alcançar a indulgência plenária são: confissão sacramental; comunhão eucarística; oração nas intenções do Sumo Pontífice; rejeição de todo apego ao pecado, qualquer que seja, mesmo venial. Trata-se de um estímulo a trilhar um caminho de verdadeira e frutuosa conversão pela penitência e distingue-se essencialmente do perdão dos pecados.
A indulgência plenária foi concedida a todos os participantes da Jornada Mundial da Juventude que cumprissem as condições acima e participassem de alguma celebração litúrgica ou ato de piedade no contexto da Jornada. Portanto, não foi concedida só às penitentes que pediram perdão do pecado de aborto.
Mas prossigamos. Gebara afirma:
Primeiro, concedem o perdão a quem pode viajar para assistir a missa do papa e passar pelo "confessionódromo” ou pelo conjunto de duzentos confessionários brancos instalados numa grande Praça pública de Madri chamada "Parque do Retiro”. O perdão deste "pecado” tem local, dia e hora marcada. Custa apenas uma viagem a Madri para estar diante do papa! Quem não faria o esforço para tão grande privilégio? Basta ter dinheiro para viajar e pagar a estadia em algum hotel de Madri que o perdão poderá ser alcançado. Por isso, nos perguntamos: que alianças a prática do perdão na Igreja tem com o capitalismo atual? Como se pode viver tal reducionismo teológico e existencial? Quem está tirando benefícios com esse comportamento?
Para além da fina ironia do neologismo (confessionódromo... ironia acentuada ao falar-se em “pão e circo” em outro trecho), creio que Ivone não se deu conta do que de fato aconteceu. O perdão do pecado de aborto não foi concedido exclusivamente na Jornada. Reitero: o Arcebispo Cardeal Varela simplesmente estendeu a faculdade de absolver e remitir a pena de excomunhão latae sententiae (i. é, automática) a todos os confessores presentes. A “novidade” não estava no perdão do pecado, mas sim na facilidade de recebê-lo. E não é que seja tão difícil assim, como veremos adiante. Bom, dito isto, podemos deixar passar todas as ilações sobre uma aliança com o capitalismo, que exigiria uma viagem milionária para receber o perdão dos pecados: não houve e não há simonia ou delito correlato no caso, o perdão não estava e não está à venda. Além disso, a concessão não estava limitada ao "confessionódromo", ou, mais apropriadamente, ao local da Festa do Perdão: a nota do Vicariato mencionava todos os sacerdotes autorizados a confessar que estivessem em Madri. A confissão poderia ser em qualquer outro lugar, não apenas no Parque do Retiro.
A teóloga afirma também:
Segundo, têm o desplante de afirmar que o perdão deste "crime hediondo” como eles costumam afirmar, é dado apenas por ocasião da visita do papa para que nessa mesma ocasião as fiéis pecadoras obtenham "os frutos da divina graça”, confessando o seu pecado. Como entender que uma falta é perdoada apenas quando a autoridade máxima está presente? Não estariam reforçando o velho e decadente modelo imperial do papado? Quando o Imperador está presente tudo é possível até mesmo a expressão da contradição em seu sistema penal. [...] O papa não concedeu perdão e indulgência total ou plena “urbe et orbe”, isto é, para todas as mulheres que fizeram aborto, mas apenas àquelas que se confessaram naquele momento preciso e por ocasião da visita do papa à Espanha. Não é mais uma vez a utilização das consciências especialmente das mulheres para fins de expansionismo de seu modelo perverso de bondade? Não é mais uma vez abrir concessões obedecendo a uma lógica autoritária que quer restaurar os antigos privilégios da Igreja em alguns países europeus? Não é uma forma de querer comprar as mulheres confundindo-as diante da pretensa magnanimidade dos hierarcas?
Na verdade, o problema aqui apresentado já foi resolvido: o perdão não foi concedido por causa da presença do Papa. Não se trata de nenhum tipo de glorificação neopopulista do líder da Igreja: não se quis apresentar o “coração magnânimo” de Bento XVI, nem tampouco se pôs em ato um plano expansionista ou de recuperação de privilégios para a Igreja. É sim uma opção pastoral de um bispo diocesano, no pleno uso de suas faculdades, que desejou facilitar o acesso ao perdão deste pecado. Facilitar, apenas, não “conceder”: mesmo sem a autorização do Cardeal ele poderia ser obtido com qualquer confessor, em Madri ou outro lugar do mundo, inclusive na igreja mais próxima da casa da penitente, como veremos na segunda parte.
Além do mais, o perdão do pecado de aborto não é uma contradição do “sistema penal”. A excomunhão latae sententiae não é eterna, irrevogável: ela não é uma “chaga” perpétua imposta pela Igreja. Basta uma passagem de olhos pelo Código de Direito Canônico para tomar ciência de que a excomunhão latae sententiae é uma “pena medicinal”, ou seja, que visa levar o cristão que nela incorre a reconhecer a gravidade do ato cometido e, diante da impossibilidade de participar da vida eclesial plenamente, chamá-lo ao arrependimento.
Perdoar os arrependidos não é exceção, mas regra! E isso também vale para o pecado de aborto. O arrependimento do pecado cometido é o elemento essencial para a remissão da culpa e a cessação da pena canônica – no caso, a excomunhão. E isto é claro no Código de Direito Canônico.
Na insatisfação com a clareza do Código não é preciso consultar os canonistas da Universidade Lateranense de Roma ou da Universidade de Navarra: basta ler a nota de rodapé do Código de Direito Canônico publicado no Brasil, disponível em qualquer livraria (e na maioria, ou em todas, as paróquias). Diz o comentador do Código publicado no Brasil, Pe. Jesús Hortal: “As censuras são penas medicinais, ou seja, privações de bens, impostas ao delinquente com a finalidade de que desista de sua vontade delituosa. Por isso, devem ser absolvidas desde o momento em que cessa essa vontade de violar a lei” (cf. comentário ao cânon 1331).
De onde surgiu a ideia, difundida também em alguns blogs da Espanha nestes dias, de que a excomunhão não pode ser levantada ordinariamente? Quantas ilações foram feitas acerca de uma incoerência da Igreja que até ontem vociferava contra o aborto, hoje o perdoa, amanhã o condena, depois de amanhã o perdoa, e assim ad aeternum! A condenação do aborto como pecado gravíssimo e a cominação da excomunhão latae sententiae para quem dele participa ativamente não foram derrogadas, permanecem firmes como antes. Assim como permanece firme como antes a disposição da Igreja de perdoar quem cometeu o aborto ou com ele colaborou ativamente, desde que esteja arrependido.
Como Ivone Gebara, eu também não quero retomar aqui os argumentos sobre a gravidade do pecado do aborto e a justificação da pena medicinal que lhe é imposta. Quantos mais abalizados já discorreram sobre isso! Todavia, quero refletir sobre uma frase da teóloga: “Mas esse acontecimento papal madrilenho, infelizmente, só mostra mais uma vez, um lado ainda bastante vivo no Vaticano, ou seja, o lado das querelas medievais em que questões absolutamente sem peso na vida humana eram discutidas.
O aborto é questão sem peso na vida de quem, afinal? Das mães que submergem na terrível síndrome pós-aborto? Na de tantas crianças cuja saúde física e mental encontra-se debilitada por abortos malsucedidos? Na vida de tantas e tantas crianças que jamais viram a luz do sol por terem sido abortadas? Ou ainda, para não apresentar os questionamentos somente de um lado do debate, o aborto é questão sem peso na vida de tantas mulheres que reivindicam o direito de decidir sobre ter um filho ou não? Parece-me que mesmo na vida destas o aborto seja questão “de peso”, senão o artigo de Gebara não teria sido escrito (nem este também).


Quando as informações são buscadas...


Neste segundo momento apresentarei, sucintamente, o que diz a Igreja acerca do perdão do pecado de aborto. Não utilizarei nenhum texto, seja documento, discurso, nota de imprensa ou similar, ex post facto. Todos os dados que servem de base às afirmações seguintes já haviam sido divulgados antes da Jornada Mundial da Juventude. Assim, pretendo demonstrar que o perdão concedido não é uma espécie de deus ex machina, sacado da “caixinha de surpresas de Roma” para mascarar com uma “aura de benevolência” a sua tão propalada “crueldade mesquinha e machista”, mas é antes a aplicação de suas próprias diretrizes pastorais, publicadas já há várias décadas, mas desconhecidas pelos que defendem o aborto. E, vale dizer: desconhecidas não por não serem oferecidas, mas por não serem buscadas. Isto posto, vejamos os dados.
O Código de Direito Canônico, promulgado em 1984 – já o dissemos – classifica a excomunhão latae sententiae como pena medicinal, que deve cessar quando não houver mais a vontade de transgredir o princípio canônico: aplicando-se ao caso, como o aborto é irreversível, pois é lógico que não se pode revivificar a criança abortada, a “vontade de transgredir” cessa com o arrependimento do ato cometido.
Pela gravidade do pecado de aborto, que é cominado ipso facto com a maior censura eclesiástica, a excomunhão (cf. Cân. 1398), seu perdão é reservado ordinariamente aos bispos (cf. Cân. 1355: qualquer bispo na confissão, no chamado foro interno; o bispo do penitente, em caso de foro externo, ou seja, fora da confissão), aos vigários gerais (são também ordinários do lugar, cf. Cân. 134; podem usar a faculdade tanto no foro interno quanto externo, apenas para os fiéis de sua diocese ou que lá se encontrem), aos padres penitenciários de cada diocese (nomeados pelo bispo para ordenar a disciplina penitencial na mesma, cf. Cân. 508 e 968 – apenas na confissão sacramental), aos capelães de hospitais, prisões e itinerantes (cf. Cân. 566, §2 – no foro interno).
Mas, poder-se-ia objetar: são poucos então os confessores que possuem comumente a faculdade de remitir a pena de excomunhão anexa ao pecado de aborto. Entretanto isso não é verdade. Considerando-se que esta faculdade compete aos ordinários ex officio, eles podem delegar para outros sacerdotes: foi o que fez o Cardeal Varela em Madri e é o que qualquer bispo diocesano pode fazer. De fato, nada impede que um bispo delegue a faculdade de absolver censuras a um, alguns ou todos os sacerdotes de sua diocese, seja para um dia, uma semana ou enquanto ele exercer o seu ministério.
Ademais, por privilégio pontifício também os sacerdotes membros de ordens mendicantes (franciscanos menores, franciscanos conventuais, franciscanos capuchinhos, dominicanos, agostinianos, carmelitas) podem perdoar o pecado de aborto e levantar a censura no foro sacramental. E há ainda outras ordens que solicitaram tal privilégio e o obtiveram.
Entretanto, pode ser que sejam considerados ainda poucos os padres confessores hábeis para remitir a pena. Vejamos, portanto, o que diz o “Vademecum para os confessores sobre alguns temas de moral relacionados com a vida conjugal”, publicado pelo Pontifício Conselho para a Família em 12 de fevereiro de 1997:
Se o arrependimento for sincero e é difícil enviar à autoridade competente a quem esteja reservada a absolvição da censura, qualquer confessor pode absolver a teor do can. 1357, sugerir a obra penitencial adequada e indicar a necessidade do recurso, oferecendo-se, eventualmente, para a sua redação e apresentação. (Orientações pastorais para os confessores, n. 19)
De fato, o próprio Código de Direito Canônico de 1984 afirma, no mencionado cânon 1357, a possibilidade de qualquer confessor absolver do pecado e da censura conexa. O cânon citado demonstra como não é difícil levantar a excomunhão. O penitente, para receber o perdão do pecado, qualquer que seja ele, grave ou venial, deve estar verdadeiramente arrependido: sem arrependimento não há absolvição sacramental. Estando arrependido, confessando-se com um sacerdote que não tem faculdade para remitir censuras, sendo difícil o acesso imediato ao bispo ou ao vigário geral ou a um sacerdote que tenha faculdade de fazê-lo e sendo tal a situação do penitente que ele não queira demorar-se mais sem participar sacramentalmente da vida da Igreja, o confessor pode absolvê-lo do pecado e da pena de excomunhão.
Para isso requer-se apenas uma condição: que o confessor imponha ao penitente a obrigação de recorrer ao bispo ou sacerdote que possa absolver da censura, no prazo de um mês (recurso no foro externo). Caso o penitente não apresente o recurso nesse período, incorrerá novamente na censura – para o aborto, a excomunhão latae sententiae (não é que ele não seja perdoado “de verdade”: o pecado foi perdoado diante do seu arrependimento e não é possível voltar atrás no perdão concedido; mas como ele não cumpriu a penitência completamente, apresentando o recurso, ele foi atingido pela sanção canônica mais uma vez).
Entretanto, é bom que se diga, não é que seja tão complicado e burocrático o processo. O confessor, como diz o Vademecum, pode oferecer-se para apresentar o recurso pelo penitente, sigilosamente, sem nem mesmo mencionar o seu nome (cf. Cân. 1357, §3, para guardar o segredo da confissão). E, recordo-me agora, isto é tão comum que o próprio Ritual da Penitência apresenta um apêndice intitulado “Absolvição de censuras”.
No fundo o processo é simples: o penitente arrependeu-se, confessou-se com um sacerdote que não tem a delegação necessária, deseja participar logo dos demais sacramentos da Igreja; o padre o absolve, dá-lhe a penitência adequada, pede-lhe autorização para apresentar o recurso ao sacerdote competente ou ao bispo; recebe a autorização, prepara e envia o pedido mantendo o anonimato do penitente. Não há nada de extraordinário aqui. Isso poderia ter acontecido em Madri, no Rio de Janeiro, em Imperatriz ou na comunidade rural de uma paróquia de minha diocese na qual o padre vai apenas uma vez no ano. Nem foi um malsão experimentalismo: a norma já está codificada desde 1984, há quase trinta anos!
Em verdade fez-se muita confusão em torno de algo normal na vida da Igreja. Pintou-se como um evento pirotécnico da "máquina vaticana" uma simples atitude de pastor de um arcebispo. Que motivações havia em tal ato? Creio que duas. A primeira é mencionada na notificação do Vicariato Geral de Madri: para que mais pessoas pudessem "alcançar mais facilmente os frutos da graça divina". A segunda: Madri é chamada a "Meca do aborto" e a Espanha é o pais onde a questão tem suscitado os maiores debates. Com a concessão tão geral, o Cardeal Varela certamente quis manifestar que a Igreja não apenas condena o aborto: ela condena o aborto, pune quem o comete, mas também perdoa quem se arrepende de tê-lo feito. Pirotecnia? Não. Cuidado de pastor.